Minhas lembranças de filho da mãe não são muitas,
De quando eu caí e bati a cabeça e ela veio apertar uma faca com sal no galo que se formara, do cafezinho feito por suas mãos para entregar ao meu pai, numa obra acompanhada por ele exatamente do lado da casa onde morávamos, dos presentinhos manuais que eu fazia na escola e entregava para minha avó com certa frustração, e do inevitável dia da fuga, após uma briga dela com meu pai e muitos objetos jogados no chão - e eu tinha lá pelos meus quatro anos - migalhas nervosas do tipo ''a mamãe vai embora mas ama vocês.''
Cresci aprendendo que era errado procurá-la ou falar seu nome. Alice tinha nos abandonado, traído meu pai com o amigo, sumido do mapa. Até de trabalhos espirituais contra o meu pai e a então nova namorada, foi acusada. Cresci assim, meio sem colo, sem ventre, sem cordão umbilical.
Passei boa parte da vida tentando me reconectar com o espiritual, reconheci por um tempo Maria como a mãe universal, mas, ainda na adolescência, parti minha santidade ao meio. Depois veio a consciência, a necessidade de perdão, sabe-se lá de fatos ou de boatos.
O primeiro reencontro foi breve e assustador.
Forçado nenhum amor floresce.
Depois veio a falta, tecnologia a preencher com aquele nome difícil de dizer ou digitar, resultado de busca em uma lista telefônica, online. Uns 18 anos ou mais e eu ainda tentando nascer de algum lugar.
Faltou a coragem e apareceu o amigo. A ligação enfim, uma voz de criança e uma senhora cansada, chorando juntos à distância.
Encontros às escondidas, histórias à tona, e eu só queria ser filho. Mas já tinha crescido e foi difícil para ela entender suas criações vinte e poucos anos depois. Desisti de ser a ponte entre ela e meus irmãos, abandonei a ideia do que era mais correto a se fazer ou de me obrigar a ligar por ser dia disso ou daquilo, só queria o direito de ser filho.
Mas, por mais estranho que pareça, o amor nasce desses lugares imperfeitos, estou sentindo falta daquela senhora mãe.
Da mala suja de roupas de banho recém chegadas, motivo do dolo inerte aprisionado no tempo, estopim da briga que motivou a sua saída, como se estivesse arquitetando nos abandonar com a mala pronta... de lá para cá tanta coisa mudou. Eu não esqueço dos meus erros nem dos dela, ainda é estranho procurá-la ou receber uma ligação, mas eu acredito nessas conexões invisíveis e totalmente palpáveis.
Depois que os pais se vão, a gente entra na vida adulta sem chão.
Minha tia "vó Cristina" nos deixou quando eu tinha meus 14 anos, a mente dela se foi com a esclerose e o corpo continuou conosco até mais ou menos a época em que eu reencontrei a Alice, mas a dor da falta foi muito maior que a esperada alegria de um reencontro, precisou 26 anos e a morte do meu pai para ela rever meus irmãos, eles ainda tentam se enxergar, mesmo depois de 10 anos de sua ida.
Ficar sem chão às vezes é bom, em alguns momentos você voa, outras cai no colo de alguém.
Ainda estamos aprendendo quem é o filho e quem é a mãe, eu não vou conseguir resgatar o tempo e a lembrança - talvez um dia pelas fotos, pelos objetos, pelos textos escritos por ela em cadernos empoeirados. Mas eu sei que o dia das Mães nunca vai ser uma data comercial para nós, pois nos lembra da nossa relação, da nossa experiência, ou da falta dela.
E no dia de hoje, por incrível que pareça, sinto falta da presença dela e de escutar aquela voz cansada mas plena de amor. Se eu posso dizer algo mais para vocês que leem esse texto é: não represem sentimentos bons com orgulho ou medo. Deixar fluir é o caminho mais natural da vida, ela mesmo se encarrega de fazer o que precisa para (quase) tudo se encaixar.
Mães sejam mães e filhos sejam filhos, ou alguma coisa parecida com isso.
Força sempre,
Raphael Pagotto
Secretário Adjunto do Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+.
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