top of page

Nem sempre a família que nos acolhe é a consanguínea

*Artigo cedido ao Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+. Não refletem, necessariamente, opiniões, visões, análises e propostas do Fórum.

(É um tanto estranho falar sobre mim, sobre minha vida pessoal. Sou extremamente grata de poder trabalhar em uma empresa que louva e respeita quem somos; que nos respeita por nossa autenticidade.)


Em 2021, faz 10 anos que trabalho na Shell e, verdade seja dita, pouquíssimas pessoas conhecem, de fato, minha história. A vida me ensinou que eu deveria ficar na minha e não confiar nas pessoas. O Apanhador no Campo de Centeio me ensinou que eu não nunca deveria contar a ninguém as coisas e, por boa parte da minha vida, esta frase de J.D Salinger me acompanhou. Até porque, aprendi que na vida, a vulnerabilidade era um sinal de fraqueza...


O que as pessoas no meu trabalho podem falar sobre mim: que sou extremamente tímida, que sou surda, mas consigo facilmente fazer leitura labial e que, há alguns anos, eu saí do armário e, sem sombra de dúvida, devo essa coragem de me assumir no trabalho à rede TRUEColors e um grande amigo que conheci na Shell.


Contudo, acho que já está na hora de eu me desvencilhar da filosofia Caufieldiana e, finalmente, contar um pouquinho sobre a minha história.

Desde muito nova, sempre tive alguns comportamentos “estranhos”. Aos quatro anos, eu dizia que era casada com a Xuxa. Eu era tão louca por ela que quando fiz uma cirurgia, eu disse às enfermeiras que meu sobrenome era Xuxa. É claro que até eu acho isso engraçado, mas à época, isso era um assunto super sério para mim. Depois disso, me encantei com a Adora (para quem não viveu nos anos de 1980, Adora era a irmã do He-Man, a She-Ra). Eu não descansei até meus pais me darem a espada dela de presente. Foi o melhor presente que ganhei na vida. Realmente, fez eu me sentir como se eu fosse a criança mais valente do bairro.


Quando uma academia de luta abriu, por convite do dono, eu e várias crianças, começamos a fazer judô, esporte que pratiquei durante um bom tempo. Era naqueles momentos que eu estava no tatame que eu me sentia verdadeiramente realizada. Foi também nessa época que eu comecei a sofrer bullying na escola. Eu não conseguia entender o porquê as outras crianças eram tão cruéis comigo quando, para mim, gostar de meninas era algo tão natural... Qual era o problema disso?


Os anos se passaram e aprendi que se eu quisesse que as pessoas gostassem de mim, se eu quisesse que as pessoas não me achassem uma aberração, precisaria encarnar uma personagem. Tentei de todas as formas, enterrar minha originalidade de modo a ela nunca, de maneira alguma, aparecer. E então, chegou à adolescência e eu tinha um amor platônico pela minha melhor amiga. Ela era de longe, a menina mais linda que eu já tinha visto. Mas silenciei. Eu tinha que me silenciar. Não queria que ela também me tratasse como uma aberração.


Eu era muito sozinha. Por mais que eu tentasse de todas as maneiras enterrar minhas emoções, era muito dificil. Fui uma daquelas pessoas que passavam o recreio sozinha num canto. Tudo o que eu queria de verdade, era desaparecer. Nessa época, eu comecei a sair com um rapaz gay que morava perto da minha casa e, toda vez que meus pais me viam com ele, eu tinha que ouvir sermões intermináveis que os gays eram doentes, drogados, promíscuos e que o correto era o casal homem-mulher e assim por diante. Eu já não tinha mais forças nem para tentar fazê-los entender que ele era o meu único amigo e se eu parasse de falar com ele, eu ficaria de fato sozinha. Era extremamente difícil seguir em frente.


Então, entrei em depressão. E ela chegou de maneira tão violenta, que tudo o que eu queria era ficar enfurnada no meu quarto “Álvares de Azevedo”, sonhando que as pessoas simplesmente se esquecessem que eu existia. Mas, isso é impossível, principalmente se você tem origem italiana. Eu simplesmente me odiava por estar viva.


Mas eu tinha que seguir com a personagem e, ter que viver dentro de um personagem, só me levou à autodestruição. Para poder me “encaixar”, quando eu saía com os meninos, eu sistematicamente precisava me embebedar, para me anestesiar e não sentir nada. Também me tornei a rebelde da família, tingindo o cabelo das mais variadas cores, colocando piercing, fazendo tatuagem e comecei a fumar. Eu estava vivendo como o Holden Caulfield e, assim como ele, é claro que também fui reprovada na escola. No fim das contas, eu estava tão mal, tão exaurida de ter que fingir todo o tempo, que simplesmente desisti de ser feliz, de ser autêntica, de viver. Eu era um peso morto que minha família precisava carregar.


E, aos trancos e barrancos, consegui concluir o Ensino Médio. Minha família se surpreendeu quando prestei vestibular e fui a 3ª colocada na Universidade da minha cidade. Comecei a cursar Letras. Na época, minha única válvula de escape era escrever poesias. E, modéstia à parte, eu era bem boa nisso. Devo ter um talento inato para poesia. Tanto que na época, fui finalista em alguns concursos internacionais. Era uma das poucas coisas que eu me orgulhava naquela época. Hoje em dia, não consigo mais escrever como antigamente. Mas é inegável, que a poesia foi a minha salvação. Quanto à faculdade, nunca consegui concluir o curso. Foi durante o curso que perdi 85% da audição e eu não conseguia dar aulas. Mas, graças a minha paixão pelo inglês que, apesar da surdez, me tornei tradutora formada, capaz de trabalhar com tradução para legendagem e tradução para dublagem. Sob esse aspecto, não fui um fracasso completo, como por tanto tempo eu acreditei.


Foi somente na faculdade que fui entender de fato o que era ser gay. Meus dois amigos ficaram extáticos quando eu finalmente fiquei com uma menina. Foi tão bom, fiquei tão feliz quando aconteceu. Pela primeira vez em anos, estava fazendo algo que não me agredia. Eu sabia que esse era o certo para mim.


Mas, como alegria de pobre dura pouco, minha felicidade se esvaiu no momento que coloquei os pés em casa. Fui literalmente engolida por uma angústia, uma culpa que não cabia dentro de mim. Ficava pensando em como estava traindo minha família daquele jeito. O que eles diriam quando descobrissem?


E por algum tempo, voltei para meu soturno armário de tormenta. Meu único contato com a comunidade LGBT era quando eu me encontrava com meu amigo. Ainda lembro nitidamente das inúmeras vezes que ele me consolou, me abraçando forte e constantemente me dizia sim, eu merecia ser feliz. Confesso que, se não fosse por ele, é bem provável que eu teria enlouquecido.


Foi graças ao incentivo deste meu amigo, que comecei a frequentar eventos em bibliotecas, lançamento de livros, lugares “nerds”, onde eu poderia conhecer pessoas. E foi seguindo o conselho dele, que eu fui ao lançamento do livro Enquanto Ainda tem Sol, que me deu o estímulo que faltava para eu me dar uma chance de viver plenamante. O livro de tinha como subtítulo “Contos para quem ainda não saiu do armário e acha não tem mais tempo para isso”. Eu e o autor nos tornamos melhores amigos.


Me assumir para minha família foi horrível. Principalmente porque não fui eu quem cheguei para meus pais e contei sobre minha orientação. À época, eu vivia com minha irmã e, por todos os motivos errados, ela contou aos meus pais. Fiquei destruída quando eles ligaram para casa da minha namorada me questionando de modo inquisitório. O resultado disso foi bem simples: fui obrigada a ficar longe dos meus sobrinhos pois eu poderia ser uma má influência para eles. Um dos meus cunhados me fez prometer se eu fosse a São Paulo e estivesse acompanhada de alguma namorada, eu não poderia chegar perto da casa deles e, é claro, meu romance do século XIX chegou ao fim.


Da mesma forma, ser assumida no trabalho foi um inferno. Na época eu trabalhava em um banco e era constantemente assediada moralmente pela gerente, por causa da surdez e por causa da minha orientação. E foi exatamente por isso, que levei tanto tempo para me assumir no trabalho. Tinha verdadeiro pânico que algo semelhante pudesse acontecer na Shell.


O que chega a ser gritante é que, já se passaram quase 20 anos que fui arrancada do armário, sem que ao menos tivessem conversado comigo, não tenho o apoio deles quando se trata de questões LGBTQIAP+. O discurso, para o público geral é dizer que não tem preconceitos, que eles até tem amigos gays... Mas ai de mim se eu chegar e falar que estou em um relacionamento... É bem provável que eles hajam da mesma forma que agiram quando me tiraram do armário. A diferença é que lá atrás, eu não tinha para onde ir, caso resolvessem me expulsar de casa. Hoje, graças a Deus, o cenário é diferente. Eu trabalho e tenho condições para me manter.


Ademais, descobri da pior maneira que, ao contrário do que eu imaginava, eu só tinha o apoio da minha mãe no que diz respeito à saúde. Passei os últimos anos por um processo extremamente doloroso no qual precisava tomar medicamentos como tramal e codeína para conseguir me manter funcional e, durante esse tempo, fui obrigada a ouvir comentários do tipo que eu faria uma cirurgia extremamente complexa por questões estéticas; havia também comentários que a mesma irmã que me tirou do armário fazia com a fisioterapeuta, que ela duvidava que eu estivesse sentindo tanta dor no crânio como eu dizia sentir, e a fisioterapeuta teve que falar que de fato, a minha dor era real, que meu tumor estava crescendo e era fácil perceber não apenas visualmente, como também ao toque.


Meu divisor de águas foi após eu ser submetida a um procedimento cirúrgico inédito no mundo, que levou quase 12h, quando elas sequer me mandavam mensagens para saber se eu estava me recuperando. Depois que elas fizeram isso, eu também parei de me importar com elas.


Diferente do que eu fiz a minha vida toda, de ligar, saber como estavam as coisas, eu agora fico na minha. Eu entendi que, como diz a música, “Eu vou morrer sozinha se que continuar nesse caminho”. Não importa o que eu faça, eu nunca estarei à altura para elas. O melhor que eu tenho a fazer, é buscar a minha felicidade, independentemente do que minha família pense ser o certo.


Enfim... Se por um lado eu não tenho uma companheira ou o apoio que eu desejava da minha família, a vida me deu uma família que realmente me acolhe e me aceita como eu sou. São pessoas do trabalho, do clube do cinema, do clube do tricô...Todas elas me fazem entender com clareza que nem sempre a família que nos acolhe é a consanguínea.


Julia Vasquez | Shell Brasil

"Minha jornada profissional foi iniciada em uma agência bancária, a qual fui contratada pelo sistema de cotas, por causa da surdez. Lá, passei por todo tipo de assédio e preconceito. O superintendente e a gerente da agência chegaram a me questionar o porquê eu não me aposentava por invalidez, já que eu era surda. Eu estava com 26 anos quando isso aconteceu. O mesmo aconteceu com a questão da sexualidade. Quatro anos depois, fui selecionada para trabalhar na Shell. Diferentemente do que eu passei no banco, na Shell, a surdez não foi impeditivo. Pelo contrário, a Shell me ofereceu todos os recursos necessários para que eu pudesse realizar meu trabalho de maneira adequada. Trabalhei em Logística por 5 anos e, desde 2016 trabalho no departamento de Segurança e Meio Ambiente, onde minhas habilidades como tradutora e olhar detalhista são bastante valorizados. Enquanto estava no departamento de Logística, consegui cursar e concluir o curso de Tecnologia em Marketing.

Fora da Shell, além de fazer tricô e ter uma linha de gorros chamada de Pride Collection (com as cores das bandeiras LGBT), onde toda renda da venda dos gorros estou direcionando à Casa Nem, também tenho um blog chamado Minha Vida com SAF, onde eu dou informações sobre a Síndrome Antifosfolipide (SAF) e um grupo homônimo no Facebook, que conta com mais de 1500 pacientes. O grupo no facebook é um espaço seguro onde os pacientes podem compartilhar suas experiências, além de tirar dúvidas sobre a síndrome."


Quer compartilhar a sua história? envie para keka@forumempresaslgbt.com




67 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page