A trajetória de Beto de Jesus se confunde com a história da militância LGBT+ no país, com a luta pelo respeito e visibilidade de pessoas vivendo com HIV e Aids e também pelos avanços desses temas, em âmbito púbico e privado. Atualmente ele é Gerente de Prevenção, Testagem e Advocacy da Aids Health Foundation. O Fórum fez uma entrevista com Beto para nosso site e conversamos sobre o contexto epidemiológico no país, o que o Brasil tem feito para melhorar as estatísticas e qual a participação das empresas nesse processo.
1. Beto, o que é e o que faz a AHF?
Atuando em 39 países, a Aids Healthcare Foundation (AHF) é uma organização não governamental, global, que tem como missão a oferta de tratamento inovador e advocacy para as pessoas, sem importar com sua condição financeira. Atualmente atendemos quase 900 mil pessoas vivendo com HIV/Aids em todo os continentes. Nossos valores são: estar sempre centrado nos pacientes; valorizar nossa gente; respeitar a diversidade; lutar pelo que é certo; e ter agilidade.
2. Quantas pessoas são beneficiadas pela atuação da AHF e quais são as pessoas priorizadas?
No ano passado (2017), realizamos globalmente 4.233.744 testes gratuitos para o HIV e distribuímos 38.672.360 preservativos. Atendemos a população geral com prioridade para as populações mais vulneráveis para o HIV/Aids: Jovens, Gays, Homens que Fazem Sexo com Homens (HSH), Travestis, Transexuais, Trabalhadoras Sexuais e Pessoas que Usam Drogas, conforme a conformação e dinâmica da epidemia nos diversos países nos quais atuamos. A AHF objetiva o enfrentamento das Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), HIV/Aids por meio de ações de prevenção, advocacy, ampliação do diagnostico rápido para o HIV, vinculação e cuidado dos pacientes positivos para HIV nos serviços de saúde.
3. Desde quando a AHF está no Brasil e o que tem realizado?
Em 2013, a AHF chega ao Brasil e, em parceria com a organização não governamental “Grupo Pela Vidda”, passa a desenvolver no Rio de Janeiro atividades de prevenção e testagem rápida para o HIV. Em 2014 e 2015, diante dos altos índices de mortalidade por Aids no estado do Amazonas, relacionado, especialmente, ao diagnóstico tardio do HIV a AHFBrasil expande suas atividades para a Região Amazônica em parceria com o Ministério da Saúde e os Programas Municipais e Estadual de IST/HIV/Aids. Um dos principais objetivos dessa parceria é apoiar a descentralização do atendimento das pessoas vivendo com HIV/Aids desenvolvendo estratégias e programas para melhor conectar os usuários aos serviços públicos de saúde.
Entre 2015 e 2016 intensifica as ações de testagem rápida junto à ONGs nas cidades: Manaus (Rede Amizade), Tabatinga (AGLTTF), Parintins (AGLTPIN), Rio de Janeiro (GPV-RJ) e São Paulo (BARONG). Além dessas parcerias, também realiza ações de testagem extramuros junto a governos locais (São Paulo e Pernambuco). Abriremos na cidade do Recife, em maio de 2018, nossa primeira clínica com enfoque na saúde sexual dos homens.
Atuamos na perspectiva da promoção de direitos, da igualdade de gênero e do respeito às diversidades. Entendemos, aliás, que o compromisso do Fórum de Empresas e Direitos LGBT+ com a promoção dos direitos humanos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, também é o nosso.
4. O que é mais significativo nas estratégias da AHF no país?
A AHF tem como missão o enfrentamento do HIV/Aids por meio de diferentes estratégias, dentre elas estão as ações de advocacy que incluem as campanhas relacionadas à prevenção do HIV/Aids e o enfrentamento de toda e quaisquer discriminações, em especial contra a comunidade LGBT e ações que pressionam por políticas públicas de maior acesso para as PVHA (Pessoas que Vivem com HIV / Aids).
Atuamos na perspectiva da promoção de direitos, da igualdade de gênero e do respeito às diversidades. Entendemos, aliás, que o compromisso do Fórum de Empresas e Direitos LGBT+ com a promoção dos direitos humanos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, também é o nosso. Juntos somos mais fortes e podemos desenvolver, divulgar e valorizar ações de conscientização e combate ao preconceito, à discriminação e ao enfrentamento do HIV/Aids desenvolvidas por empresas de todo o país. Quando se diminui o preconceito, o estigma, a discriminação e se enfrenta as causas das vulnerabilidades, diminui-se também as infecções pelo HIV.
5. Em linhas gerais, qual o contexto epidemiológico do HIV no Brasil e de que maneira isso afeta o mundo do trabalho e a sociedade? Quais os principais desafios?
Dados divulgados pelo Ministério da Saúde revelam que no ano de 2017, 866 mil pessoas viviam com HIV/Aids no Brasil. Dessas, cerca de 135 mil pessoas não sabem que estão infectadas. A epidemia brasileira é considerada estável em nível nacional, contudo, algumas populações são mais afetadas que outras. Enquanto as estimativas mostram que 0,39% da população geral vivem com HIV no Brasil, entre homens gays e outros homens que fazem sexo com homens (HSH), com 18 anos ou mais, essa prevalência é de 18,4%[1] enquanto entre travestis e mulheres transexuais esse percentual gira entre 16,9% a 36,7%[2].
No intuito de responder esse cenário, o governo brasileiro, em dezembro 2015, assinou a “Declaração de Paris”. Essa assinatura confirma o empenho dos países em acelerar a resposta para acabar com a epidemia com foco nas populações mais afetadas pelo HIV/Aids, além de mobilizar recursos para melhorar a integração entre as diferentes esferas da saúde pública.
Nesse mesmo ano, o município de São Paulo se somou a mais de 200 outros municípios ao redor do mundo que estão mobilizados rumo às metas de tratamento 90-90-90 para 2020, ou seja, ter 90% das pessoas vivendo com HIV diagnosticadas; destas, que 90% estejam em tratamento; e que 90% deste grupo tenha carga viral indetectável.
A participação das empresas no enfrentamento do HIV/Aids é decisiva para a proteção dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras, na propagação de informações e no apoio para os que vivem com HIV/Aids e suas famílias.
6. Como é esse modelo brasileiro de atenção ao tema?
O Brasil hoje tem uma das maiores coberturas de tratamento antirretroviral (TARV) entre os países de baixa e média renda, com mais da metade (64%) das pessoas vivendo com HIV recebendo o tratamento para HIV, entretanto, isso não é suficiente se queremos alcançar o fim da epidemia. Muitas pessoas ainda não conhecem seu status sorológico. Outras, nunca fizeram o teste para detectar se vivem ou não, com o vírus. Há ainda aqueles que são soropositivos e não aderem ao tratamento.
O modelo de prevenção brasileiro propõe uma prevenção discutida, combinando tecnologias comportamentais, como o direito à informação; enfrentamento dos estigmas e das discriminações; testagem regular do HIV e, quando necessário, adesão à medicamentos para o tratamento das IST’s (Infecções Sexualmente Transmissíveis); as tecnologias biomédicas, como o Uso de Preservativo, Testagem, Profilaxia Pós Exposição (PeP), Profilaxia Pré Exposição (Prep), Manejo das IST, das coinfecções e das comorbidades, com as tecnologias estruturais nas quais destaca-se o protagonismo comunitário, a prevenção das violências, revisão de leis e políticas em defesa dos direitos humanos.
Tais tecnologias são essenciais para o fim da epidemia pois ampliam as possibilidades de autocuidado e cuidado mutuo, mas ainda precisam ser conhecidas por toda a população. Esse é um grande desafio porque muita gente ainda não conhece o leque de opções da Prevenção Combinada e, no mundo do trabalho, isso não é exceção. Nesse sentido o Fórum de Empresas e Direitos LGBT+ é uma porta aberta para amplificar essa discussão.
Garantir acesso dos e das trabalhadoras, de suas famílias e de seus dependentes a informações atualizadas sobre as possibilidades da Prevenção Combinada; colocar no mural da empresa e demais espaços de comunicação, mensagens e matérias referentes ao tema, além de ofertar preservativos no local de trabalho, são formas simples, mas efetivas de prevenção.
7. Uma das prioridades do Fórum no planejamento de 2018 é trazer a discussão do tema HIV e Aids para o cenário empresarial. De que maneira as empresas podem – e devem – colaborar na prevenção e no enfrentamento da discriminação?
A participação das empresas no enfrentamento do HIV/Aids é decisiva para a proteção dos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras, na propagação de informações e no apoio para os que vivem com HIV/Aids e suas famílias. Não dá mais para apenas falar de Aids no dia 1° de dezembro e colocar algumas camisinhas disponíveis nos banheiros. A situação pede mais que isso! É necessário ousar, usar nossas redes de comunicação, preparar mensagens estimulando a testagem, a adesão para aqueles que vivem com HIV/Aids, não esconder esse tema. No início da epidemia as pessoas infectadas se aposentavam. Hoje com o advento dos antirretrovirais as pessoas têm vida normal e produtiva e devem ser respeitadas e incluídas no mundo do trabalho.
A “Recomendação 200 sobre o HIV e a AIDS e o Mundo do Trabalho (R200)”, da OIT – Organização Internacional do Trabalho, ajuda a orientar políticas e programas de responsabilidade social na gestão empresarial. É necessário ampliar e reforçar o trabalho de Prevenção Combinada, facilitando o acesso aos serviços e estimulando trabalhadores e trabalhadoras a conhecerem mais sobre as diferentes estratégias de prevenção e assistência em relação às IST, HIV/Aids, além do enfrentamento de estigmatização e discriminação dos trabalhadores que vivem e convivem com HIV.
8. Recentemente você esteve presente em um workshop sobre HIV e Aids que o Fórum de Empresas e Direitos LGBT+ promoveu com profissionais de 16 empresas signatárias. Além de você, representando a AHF, tivemos apresentações de representantes do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS), da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT), do Ministério Público do Trabalho (MPT), da Agência de Notícias da Aids e da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Como você avalia essa reunião e quais os próximos passos que podemos dar todos juntos?
A reunião trouxe aspectos importantíssimos para o enfretamento das IST, HIV/Aids e da discriminação no ambiente de trabalho. É importante que as empresas sejam estimuladas no exercício de sua responsabilidade social. Divulgar e valorizar ações de conscientização nas empresas é decisivo na resposta ao HIV/Aids e melhoria das condições de saúde dos e das trabalhadoras.
Um estudo realizado em 2012 pelo Conselho Empresarial Nacional para a Prevenção ao HIV/Aids (CENAids), em parceria com o Ministério da Saúde e o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (UNAIDS), trouxe a informação de que 86% das empresas não realizavam ações de prevenção às DST/Aids, termo utilizado na época. Esse é um dado alarmante que precisa ser corrigido.
Garantir acesso dos e das trabalhadoras, de suas famílias e de seus dependentes a informações atualizadas sobre as possibilidades da Prevenção Combinada; colocar no mural da empresa e demais espaços de comunicação, mensagens e matérias referentes ao tema, além de ofertar preservativos no local de trabalho, são formas simples, mas efetivas de prevenção. Outra medida atraente para tratar do assunto é incluir workshops, palestras, rodas de conversa e outras ações de mobilização sobre o tema. Uma boa ideia também é o voluntariado extra-muros sobre o tema.
Sobre os próximos passos, a AHF Brasil está preparando um material instrucional detalhando os aspectos da prevenção combinada e situando as pessoas sobre o tema. Iremos oferecer juntamente com UNAIDS Brasil e a ANAMT workshops para capilarizar essa discussão.
9. Agora vamos voltar um pouco mais na linha do tempo… além do Fórum de Empresas e Direitos LGBT+, você também é um dos fundadores da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, considerada hoje a maior do mundo. Qual o papel desse evento na luta por direitos e visibilidade dessa população?
Há 23 anos (1995), estávamos no Rio de Janeiro na 17ª Conferencia Mundial da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, pessoas Trans e Intersexo (ILGA, em inglês), realizada, pela primeira vez, na América Latina. Ao final da Conferência, fizemos uma marcha na Avenida Atlântica expressando nosso orgulho por sermos LGBTI+. Considero que foi nossa primeira Pride Parade. Obvio que, antes disso, muitas outras manifestações haviam sido feitas, mas não com essa ideia de orgulho de ser o que somos.
Considero esse o embrião das Paradas no Brasil. Alcunhamos a expressão “visibilidade massiva”, ou seja, estamos em todos os lugares, e devemos nos visibilizar. Isso deve estar para além da Parada. É necessário estar por exemplo, nas empresas. Trabalhar sem poder ser quem somos é muito difícil e gera muito sofrimento.
No início da Parada, nossas maiores preocupações eram a aprovação da união civil, a criminalização da homofobia e o reconhecimento do nome social. Muitas dessas propostas se tornaram conquistas e transformaram nossas vidas… outras ainda precisam de esforço coletivo, vide a homo-lesbo-bi-transfobia que segue sem ser criminalizada e o Brasil respondendo pela metade das mortes de pessoas trans (travestis e transexuais), nos últimos seis anos, no âmbito mundial.
A Parada do Orgulho LGBTI+ foi e ainda é um espaço de visibilidade política, de comunhão e afeto para a comunidade LGBTI+ e para milhares de pessoas que defendem a diversidade e os direitos da população LGBTI+. Não podemos vacilar e não vamos recuar um milímetro sequer na defesa de nossos direitos, nossas pautas, pela diversidade sexual e de gênero e por mais direitos!
O Fórum teve um crescimento exponencial e isso é lindo de ver. É lindo de ver presidentes se posicionando em relação ao tema e assumindo compromissos publicamente. Tenho muito orgulho de ter participado dessa gestação ao lado do Reinaldo Bulgarelli e de todxs que trabalharam e trabalham na Txai Consultoria e Educação.
10. Como dá para perceber, a sua bagagem é muito rica e importante. Como você vê a atuação hoje em dia do mundo empresarial em relação aos direitos LGBT+?
A responsabilidade social não pode ser encarada de modo seletivo! Há que se tomar cuidado com a higienização da diversidade. Claudia Werneck nos pergunta: “QUEM CABE NO SEU TODOS?”, nome de um de seus livros sobre inclusão. Essa deve ser a pergunta que as empresas devem fazer para si próprias em relação aos direitos LGBTI+. Muita coisa já mudou, muitas empresas têm o tema da diversidade sexual na sua pauta, nos seus grupos de afinidades, mas queremos mais.
Queremos que LGBTI+ tenha o mesmo acesso na carreira que os heterossexuais. É importante avançar mais do que o discurso e praticar a diversidade de verdade. Não dá, por exemplo, para deixar de mudar o e-mail ou o crachá de uma trabalhadora transexual dizendo que ela ainda não mudou seu nome judicialmente, por exemplo. Estamos no caminho, mas ainda falta muito a fazer.
11. Nesse ano, em que o Fórum de Empresas e Direitos LGBT+ completa 5 anos, qual o balanço que você faz do tema na atualidade e o que você deseja para o futuro?
O Fórum teve um crescimento exponencial e isso é lindo de ver. É lindo de ver presidentes se posicionando em relação ao tema e assumindo compromissos publicamente. Tenho muito orgulho de ter participado dessa gestação ao lado do Reinaldo Bulgarelli e de todxs que trabalharam e trabalham na Txai Consultoria e Educação.
É impressionante a mudança conseguida nesse período de tempo tão curto. Credito isso a dedicação de todos que se juntaram a essa ideia. Ela, como o pão, fermentou e cresceu, ficou lindo! O Fórum está fazendo história e é um case internacional.
Não sou bom de prever futuro, mas gostaria de ver o Fórum capilarizando em empresas menores e que os “10 Compromissos da Empresa com a Promoção dos Direitos LGBT+”, que orientam as práticas das empresas no tema, possam ser mais difundidos e incorporados no dia-a-dia. Eles expressam o entendimento sobre o papel das empresas, oferecem uma agenda de trabalho para todos e qualificam a demanda no relacionamento com o Estado e a Sociedade Civil.
[1] Kerr et al. Comportamento, atitudes, práticas e prevalência de HIV e sífilis entre homens que fazem sexo com homens (HSH) em 12 cidades brasileiras. Relatório técnico entregue ao Departamento das IST, do HIV/aids e das Hepatites Virais, 2017
[2] Bastos et al., “Pesquisa Divas: Diversidade e Valorização da Saúde. Estudo de abrangência nacional de comportamentos, atitudes, práticas e prevalência de HIV, Sífilis e Hepatites B e C entre travestis e mulheres trans”, Apresentação realizada em março de 2018
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